terça-feira, 2 de outubro de 2012

A admissibilidade do Recurso Especial

A admissibilidade do Recurso Especial


Os fatos e a admissibilidade do recurso especial

"Qualquer alusão a fato, no acórdão ou no recurso, está sendo usada como pretexto para impedir a subida do especial"


É texto padronizado para a não-admissibilidade de recurso especial pela Presidência da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo aquele que afirma haver sido a decisão combatida “decorrência de convicção formada pela Turma Julgadora diante das circunstâncias fáticas próprias do processo sub judice”, aduzindo, ainda, o despacho, como simples conseqüência da premissa anterior, “aterem-se as razões do recurso a uma perspectiva de reexame desses elementos”, a cujo objetivo não se prestaria o recurso especial, diante da prescrição da súmula nº 7 do STJ (cf. entre outros, despacho no REsp 465754.4/9-01, de 25.06.07).

Como bem coloca ARNALDO ESTEVES LIMA (REsp 819937, DJU de 19.06.06, p. 206), é certo que “o Superior Tribunal de Justiça, em recurso especial, aprecia tão-somente as questões de direito federal envolvidas na demanda”. Mais do que isso, essas questões devem versar direito federal de natureza infraconstitucional, ficando, pois, afastadas de seu âmbito as questões de fato, bem como as questões de direito local e constitucional. Todavia, dessa particular circunstância do especial, reveladora, em síntese, de seu específico regime jurídico, não decorre a harmonização das duas primeiras premissas das decisões padronizadas, concluindo pela aplicação da súmula n. 7, de modo a abortar todo especial que trata de fato ou cujo acórdão atacado construiu-se a partir de fatos.

É verdade que, se o recurso se restringir ao pedido de reexame dos elementos de fato da decisão, ele não poderá ser admitido; não é correto, porém, que, se o acórdão for decorrência da convicção formada pelos julgadores, diante das circunstâncias fáticas do processo, ele não poderá ser conhecido. São duas realidades diferentes, até porque uma diz respeito à decisão e outra, ao recurso, que não se encontram sempre atreladas, de modo que, em grande número de casos, a invocação da súmula n. 7, como fundamento para a não subida do especial, não se mostra adequada, cerceando, indevidamente, o acesso da parte vencida à instância superior a que tem pleno direito.

As questões de fato são definidas e resolvidas na chamada instância ordinária, que se encerra no julgamento do agravo, quando se cuidar de decisão interlocutória, e no da apelação ou, se for o caso, dos embargos infringentes. A partir dessas decisões, os recursos que podem ser interpostos devem respeitar o quanto foi definido sobre os fatos, ficando em aberto apenas o tema jurídico, que será só o que poderá ser enfrentado pelas instâncias superiores. Portanto, mesmo que a decisão se ampare em fatos e seja decorrência, como, aliás, não pode deixar de ser, da convicção da turma julgadora, o especial, apenas em razão disso, não está cerceado. Importante é unicamente o que se discute no recurso, prescindindo-se do teor da decisão.

Em razão disso, é correta somente a segunda assertiva do despacho padronizado, na qual se diz que o especial não poderá subir, por se aterem suas razões a uma perspectiva de reexame dos elementos de fato. A súmula n. 7 do STJ deixa bem clara essa limitação, prescrevendo que “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. Dessa forma, o que o regime jurídico do especial veda – e a súmula estampa essa vedação – é o enfrentamento da questão de fato, ou seja, não se pode discutir fatos e provas pela via do especial. Entendendo-se questão como ponto controvertido dentro do processo, a ilação impõe que não se tenha questão de fato, ou seja, ponto controvertido acerca de fatos.

Nada impede, portanto, que o acórdão recorrido retrate discussão de fatos; revele convicção do órgão julgador sobre os fatos trazidos pelas partes; discuta provas e as interprete. Isso é próprio dos recursos ordinários (apelação, embargos infringentes, agravo) e, por si só, não é óbice ao cabimento do especial, desde que a discussão nesse se aperte dos fatos. Um acórdão resultante de fatos pode trazer questão jurídica e que, como tal, autorize a interposição, a subida e o conhecimento do recurso especial. ROBERTO ROSAS, nessa linha, cogita da valorização jurídica ou qualificação jurídica da prova, lembrando que os fatos provados podem ser incorretamente qualificados, vindo a se entender, por exemplo, que a cessão gratuita de um bem para uso de outrem não denuncie comodato (cf. Direito Sumular, Malheiros, 12ª edição, 2004, p. 343). Aceita-se, nesse caso, o contorno dos fatos demonstrados, concorda-se com o mosaico de provas formado, mas discute-se o enquadramento que se deu a esses fatos, denotando, assim, uma questão de direito, como tal suscetível de ser enfrentada pelo especial.

Também não se submetem ao óbice da súmula em tela os especiais que discutem a validade do meio que se admitiu para provar os fatos. Assim, se o acórdão concluir pela existência de um contrato de valor superior a dez salários mínimos, a partir da simples prova testemunhal, estará afrontando a regra do art. 401 do CPC, revelando, pois, questão de direito, de vez que aquela prova é inidônea para a demonstração do que se pretendia, pouco importando que a convicção dos julgadores resulte dos fatos demonstrados.

Do mesmo modo, não é correta a invocação da súmula n. 7, quando o recurso aponta para a contrariedade ao art. 535, II, do CPC, por força da falta de exame, pelo tribunal recorrido, de questões de fato, que lhe caberia apreciar, como se entendeu no despacho de admissibilidade nos embargos de declaração n. 218602.4/9-01 do TJSP, DOE 31.05.07. Se o recorrente não pedir que os fatos não-apreciados o sejam pelo STJ, nada existe de errado, pois a questão que se põe é da inteireza do julgamento, matéria de direito. Nessa mesma linha, corretamente, o STJ entende como questão de direito a discussão sobre julgamento extra petita, ainda que isso importe em discutir se a sentença acolheu ou não fundamento diverso da causa de pedir e do pedido, articulados na petição inicial (AgRg no REsp 606165, rel. DENISE ARRUDA, DJU de 14.11.05, p. 187).

Qualquer alusão a fato, no acórdão ou no recurso, está sendo usada como pretexto para impedir a subida do especial, esquecendo-se de que, como ressalta HAMILTON CARVALHIDO, “é função constitucional do recurso especial subordinar os fatos julgados em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, aos efeitos da lei federal com incidência, assegurando a vigência do direito federal” (Edcl. no REsp 242386, DJU de 25.09.00, p. 148), o que se proíbe é apenas o pedido de reexame de fatos e provas, nada além disso.

A distância entre as questões de fato e de direito não é tão grande, mas, com certeza, não permite exorcizar em definitivo o fato do especial, o que nem o regime jurídico do especial e nem a súmula n. 7 aplaude. Os fatos podem ser considerados no acórdão e até no recurso, desde que não se peça o seu reexame, somente o que é obstado pelo regime jurídico do especial.

*Clito Fornaciari Júnior, ex-presidente da AASP – Associação dos Advogados de São Paulo, é advogado em São Paulo

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